top of page
Textura marrom abstrata

O fio do Apego


I

 

"Espera... vira-te para a janela, não quero que me vejas partir. Dá-me mais um beijo e deixa que te leve em mim."Abraçaram-se mais uma vez, sem terem hora ou dia para novamente se verem. O próximo encontro era sempre como esperar por um dia de sol.... olha-se o céu, pede-se aos deuses, e espera-se na doce certeza que o sol brilha, ainda que não se veja.Era doce cada momento. Secreto porque assim o escolhiam. Era um mundo só deles, daqueles mundos que só se vêm no cinema. Ali se escondiam do mundo, dos julgamentos, das regras, das leis, dos olhares... e se abriam um ao outro. E foi assim que escondidos de si, que se encontraram um ao outro.Pablo virou-se para janela.... enquanto ela partiu.E lá fora.... estava escuro.... continuava tudo escuro.Era assim que no escuro... o que não se vê, não se tem, o que não se tem, não se cobra, mas o que se sente....fica no escuro. Guardado como um tesouro, para que ninguém o cobice ou estrague.Fechou a janela, e partiu também....

 

Batiam as 18:00... apressava o seu andar para chegar ao carro. Desta vez queria ser ele a chegar primeiro. Subiu a gola do casaco, não tanto pelo frio, mas porque antecipava já aquela mão no seu pescoço... Pablo pensativo, passo e corpo firme olhou para o fim da rua, talvez ela já tivesse chegado..."Espera por mim, estou quase a chegar!" Já toda uma eternidade tinha passado desde a última vez que ele tinha virada costas para ela partir. Tudo o que bastou foi tocarem-se com os olhos, como se o tempo não tivesse passado, enlaçaram os dedos e caminharam lado a lado, em silêncio. Palavras para que as queriam se o que tinham não tem nome? E porquê chamar por um nome algo que não se vê?Deixaram de ouvir o que os rodeava enquanto no fundo ele pôs a tocar uma música que ela tinha escolhido, tinha-lhe dito "sempre sonhei ouvir esta música quando estou nos teus braços..." ... perdidos se entregaram à dança do vento que soprava forte lá fora. "deixa que seja eu a partir primeiro desta vez… mas fica com um pouco de mim”. Abraçaram-se sem ter sequer a certeza de quando se voltariam a ver...sabiam apenas que esse dia chegaria.Abriu a porta e enfrentou o temporal... Madalena ficou... sentada a ver a chuva ferir a janela.E mal o viu passar, sabia que o nó que sentia no peito se chamava saudade!

 

II

 

Tinham passado vários verões desde a última vez que se tinham visto. Ele contava treze desde a última vez que da sala dela atendeu uma chamada e dizia “… mas tens dúvidas? Claro sim… não demoro, fica calma, daqui a pouco estou aí. Beijo”, ela do quarto ouviu calada e voltou a recebê-lo na sua cama ainda quente enquanto ele se despedia “desculpa linda, surgiu um imprevisto no trabalho…”. Ela sorriu, encostou-se à almofada impregnada do cheiro da paixão, e para não se fazer de fraca, acendeu um cigarro…. Travou longamente… e viu-o sair. Desta vez não o levou à porta, nem tão pouco pediu que lhe avisasse se tinha chegado bem. Outra o esperava… e não ia disputar fosse o que fosse. Nada se perde, quando nada se tem.

Já ela, contava dez verões, tinham passado dez verões desde a última vez que o viu. Cruzaram-se nas escadas de um centro comercial. Ela subia cheia de sacos, e ao lembrar-se que ele morava por perto, olhou para cima e como ironia, viu-o. Ali estava ele, sereno de mão dada com alguém que lhe sorria de olhar embevecido, como quem olha para um anjo, acabado de chegar do céu. Madalena sentiu as pernas tremer, sentiu o peito a estalar e encostou-se ao corrimão lembrando do quanto o bater das asas daquele anjo a tinham queimado na noite em que ele se foi embora sem nunca mais voltar. Fingindo que procurava qualquer coisa na mala, deixou-os passar, conseguindo reconhecer o perfume de Pablo… aquele que ficava sempre nas almofadas e nos lençóis das noites mais quentes da sua vida.

“Maldita a hora que vim aqui!”, pensou enquanto as escadas rolantes se cruzaram, e seu peito estalou mais uma vez num grito silencioso que ele pareceu ter sentido, pois nesse momento deixou cair os sacos que levava na mão e olhou para trás. Não fosse a boina que ela usava e o cachecol enrolado ao pescoço, ele teria reconhecido os caracóis revoltos e rebeldes que ele tanta vez afagou.

Era Natal.

E fora última vez que os seus corpos se cruzaram, contudo, as almas não deixam de se cruzar quando sentem saudade, nem tão pouco o espírito descansa, quando a pele se habitua ao fogo do desejo. Assim é o fio do apego.

 

III

 

Decidiram assim por acaso, sem contar nem planear, tal como tinha sido a despedida, de se encontrar, só para conversar. Só para ver o que o tempo lhes tinha feito.

E assim foi, numa tarde quente de verão, ah… o verão! Era Julho… poucos dias depois do aniversário de Pablo.

Ela vestia um vestido azul que convidada Pablo a lembrar as curvas, a pele e o toque que ele tão bem conhecia. Apenas as suas sandálias de tiras vermelhas tinham sido escolhidas para o provocar. Ele nunca resistiu às suas pernas e lembrou-se das vezes que tinham feito amor e em que ele lhe tinha pedido “… deixa ficar as sandálias…”

Chegou um pouco mais cedo que o combinado, não queria ser ela a ser observada ao chegar. Sentia-se muito mais segura se estivesse sentada (não lhe fossem as pernas tremer) quando ele chegasse. Pediu uma água fresca e esperou.

O sol penetrava a janela do bar do hotel onde tinham marcado encontro e ela temia que ele não aparecesse. Ele tardava. Passou batom nos lábios, pouco…. Sabia que ele gostava de a ver de batom. Não foi tanto por saber que ele gostava daquele batom, mas por saber que sendo ele um homem comprometido provavelmente iria evitar um beijo para não levar marcas, facilitava assim a possível desculpa do não beijo. Na verdade o beijo nunca era dado à chegada… era à partida, sempre à partida.

Chegou cheio de calor, com uma aparente calma muito mal disfarçada. As suas mãos tremeram quando pegaram nas dela e as beijou ao cumprimentarem-se. Tal como ela tinha previsto, não foi nos seus lábios que depositou o beijo do reencontro.

Também ele evitava o beijo, sentiu instintivamente que os dois sentiram que um beijo seria por demais arriscado.

A conversa foi banal, contaram os seus percursos um ao outro como se nada os afetasse. Afinal eram dois adultos que se conheciam e conversavam. Nem um nem outro deu a entender o quanto lhes ferviam as veias, até inquieto olhou para o seu relógio: “hoje não posso demorar, mas eu quero voltar a ver-te. Nem sabia se virias…. Afinal tenho muito que explicar.”

“Eu sei o que se passou, eu vi-te nas escadas rolantes, e já trazias aliança…. E eu não quero explicações, muito menos desculpas e promessas”.

Aquele instante parecia coloca-los perante uma escolha, um “agora ou nunca”…. Com rouca voz a sair muito depois do olhar, perguntou:

“E agora?” …. Engoliu em seco. “Depois de te ver, tenho que te confessar que nunca mais amei ninguém como eu te amei e nunca, uma mulher me fez sentir o que me fizeste sentir. Porque é que estamos aqui depois de tantos anos? Porque é que eu não te esqueço? Porque é que cada vez que eu fiz amor, eras tu que me vinhas ao pensamento? Eu sei que não devia dizer isto. Temos as nossas vidas estruturadas, temos compromissos, mas eu não me posso ir embora sem saber duas coisas. Porque é que vieste? e preciso que me deixes falar contigo mais uma vez, deixas? Escolheste logo hoje para bebermos café, eu tenho um compromisso mas avisei que chegaria tarde, pois não queria ser eu a razão de não nos vermos… só sei que me falta qualquer coisa”

“Eu estou aqui pela mesma razão que tu. Não me sais da pele. Nunca pensei passar por isto que estou a sentir. Sei apenas que te quero ver mais uma vez…”

Sem mais nada dizer, levantaram-se do bar do hotel, e saíram lado a lado em silêncio, nada marcado, nada prometido. Cada um ouvia o bater do seu próprio coração.

“Onde tens o carro?” perguntou ele.

“Logo ali na curva.” Sorriu.

“Eu acompanho-te” pegou na mão dela, de mão dada de novo ambos sabiam, ambos sentiram o velho arrepio. Chegando ao carro, Pablo pegou no rosto de Madalena e tomando-o em concha entre as palmas das mãos, beijou-lhe a testa lentamente, ela suspirou sem que ele percebesse. Beijou-lhe de seguida o queixo e encostou levemente os seus lábios aos dela…. Uma e outra vez, ate se beijarem, abandonados e abandonando todo o medo e dúvidas que até ali sentiram.

“Eu não sei onde isto vai dar… mas quero ver onde nos leva” sussurrou ele de testa encostada à dela.

“Eu também não” disse ela, “mas sei que a nossa história foi bonita. Adeus. Bom regresso a casa” virando-se para saborear a boca ainda húmida do beijo inesperado.

“Adeus?” disse apertando a mão de Madalena como quem trava um caminho, um destino.... “eu ligo-te” pensando para si o quão vivo aquele beijo o tinha feito sentir.

No radio tocava “me and mrs Jones”….. e caiu a mensagem “cheguei bem, mas ainda estou nas nuvens”

Ela sorriu e pensou para si: “Mas eu não te pedi para que me avisasses…”

 

 

IV

 

Os dias passaram, e tornaram-se semanas, que se tornaram meses… já lá ia ano e meio desde o reencontro.

Deixavam que a vida os vivesse e quando se tornava sufocante serem vividos por uma realidade que já não podiam fingir, trocavam doces momentos…. Balão de oxigénio para aliviar uma falta que já não tinha nem cura, nem solução.

Muitos eram os suspiros em que um desfalecia no outro, deixando que o renascer do corpo acontecesse. Enfrentavam marés de segredos confinados no peito, guardavam gemidos e nomes expirados nos momentos vivos que respiravam a dois. A sós. Um no outro, cada um em si. Como se um apenas vivesse quando outro morresse. Era assim o ciclo da vida entre eles. Uma quente e calada entrega, permuta de quem se quer e não se entrega. Permuta de quem muito escolhe e tarde ou nunca acerta.

Permutas… não será a vida nada mais que permutas, entregas e perdas?

 

V

Três anos, já se tinham passado três anos desde o primeiro arrepio.

Por nada poderia ser negado o fogo que os incendiava, bastava uma palavra, um fechar de olhos em que se apertam, prendem e escondem recordações. Um cheiro que se colava no rosto ao cruzar-se no passeio bastava que olhasse para trás e pensasse… “será?”

A vida chegou e a vida aconteceu. Acontece sempre, quer queiramos ou não, não pode ser travada. Depressa a mesma os afastou, não por escolha, mas porque a vida é soberana e caprichosa nos seus desígnios.

De novo o silêncio.

De novo a incerteza.

De novo a sensação que o vazio voltara.

Os dias cinzentos estendiam-se com a saudade, um tapete vermelho de paixão e saudade desenrolava-se aos seus pés a cada dia que passava.

As esquinas, os cafés com vista, um mergulho noturno na praia… os carros e ambulâncias, as motos, e o cheiro…. O cheiro que não esquecia, parecia atormentar cada latejar das suas veias. Sentiu uma premente vontade de o ouvir, de saber dele... de todos os tormentos, o silêncio era o mais amargo de engolir, e ela conhecia bem o seu sabor.

Decidiu lembrar e calar. Se queria ultrapassar mais um dia, tinha que amordaçar a saudade.

Estremeceu-lhe o peito num baque que já conhecia, ao ouvir o “plim!” de uma mensagem que lhe caía, leu: “Espero-te bem, bj”

Estremeceu, apertou os olhos como se pudesse esconder de si própria a implosão que sentira na carne, afastou-se do “buraco” para onde tinha sido atirada. Fez um café… bebeu.

Pensou. O súbito aperto no peito mal permitia um suspiro sequer.

 O primeiro impulso que sentiu foi raiva. Raiva! Porque agora?

Teve vontade de lhe dizer tudo, tudo. O quanto doía cada chegada, e quanto matava cada partida. Tudo o que tinham vivido, afinal, não se tinha apagado. Voltou com tanta força que quase perdia(m) a cabeça. Raiva, saudade, vontade (seria uma forma de amor que jamais tinha sido nomeado?), juntaram-se num baile estonteante a três, como é tantas vezes a vida.

“estou bem, mas com saudades tuas.”

Um intenso formigueiro assaltou toda a sua estrutura. Abanava e sacudia-lhe a carne num ferver de corpo difícil de conter. Sentia a pontada do beijo, da língua gelada, o cheiro quente das vozes nas peles suadas. Num gesto que se perde, virou o rosto para o lado e mesmo assim não conseguia fugir.

Diz o ditado que se pode fugir, mas não se pode esconder.

Porem para eles estava escrito que se pode sempre correr, fugir…. Mas mais tarde ou mais cedo seria imperativo parar!

 

VI

 

E à nova batida das 18horas, de um outro dia qualquer, entre o fim do verão e um fertil outono, voltou a esperar por ela, sem saber se ela viria.

Sim, porquê dar nome a algo que não se vê? Porquê entender as vagas do vento saudade ou marés da vida?

O amor… Seja lá o que ele for, não tem nome nem definição. Não tem regras escritas, não é contrato, não é promessa, não é livre nem escravo.

O amor é. Eles sabiam.

 

Ruth Collaço

 

 

 

 

 

 

Posts recentes

Ver tudo

1 comentário

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
Convidado:
14 de mar.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Bravo caríssima 👏 ✍️ 🌹

Curtir

© 2035 por F.S. Ramos. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page